O Samurai de Curitiba
Durante
as décadas da ditadura, o país vivenciou em paralelo um cenário
prolífero no meio dos quadrinhos. Buscando influencias distantes dos
infantilizados (para os padrões da época) quadrinhos de
super-heróis, quadrinistas brasileiros exploravam gêneros como
pulp, sci-fi, western e até mesmo erotismo.
Como colunista do Japanóia, gosto de lembrar a relação do público
brasileiro com os mangá. E que embora hoje vivenciamos um mercado
ativo, com novos títulos, editoras e público interessado, nós
esquecemos que o passado dos mangás no Brasil é mais antigo que
muitos imaginam. Muitos fãs desconhecem o nome de Cláudio Seto, um
homem cuja obra serviu de ponto de partida para os mangás no Brasil.
Nascido
em Jundiaí, interior de São Paulo. Chuji Seto Takeguma passou boa
parte de sua infância no Japão, onde conheceu pessoalmente Osamu
Tezuka e seu estúdio. A presença do famoso quadrinista de
mangás seria uma influência crucial nos primeiros trabalhos de
Seto, como “Ninja – O Samurai Mágico” e posteriormente
“Super Pinóquio“. Outra influência de Cláudio Seto foi
o quadrinista Sanpei Shirato. Considerado um dos pais do gekiga
e famoso pelo seu mangá “A Lenda de Kamui“, um drama
histórico que aborda o Japão Feudal através de uma ótica
marxista. Outra influência menos citada de Cláudio Seto é Hideko
Mizuno, a autora de “Honey Honey”, considerado um dos
primeiros mangás de sucesso voltados para o público feminino.
Chuji
Seto passou boa parte de sua infância no Japão e teve uma criação
budista. Ao retornar para o Brasil, Chuji Seto enfrentou dificuldades
para retirar seu diploma primário em um colégio católico. Por seu
nome japonês e sua ligação com o budismo, a administração do
colégio o considerava pagão, exigindo que Chuji fosse catequizado
para retirar o seu diploma. O nome “Cláudio” veio de seu irmão,
que ainda residia no Japão. Cláudio Seto costuma ironizar o
episódio em entrevistas, falando que a atitude do colégio lembrava
os jesuítas com os índios no Brasil colonial e que ele era o “falso
Cláudio Seto”.
Cláudio
Seto se tornou o nome artístico do quadrinista, sendo lembrado até
hoje por esse pseudônimo. Seto oficialmente entrou no cenário dos
quadrinhos em 1964 com a Editora Edrel, graças ao convite de Minami
Keizi, um dos membros fundadores da editora. Minami Keizi também
cresceu no interior paulistano e teve contato com os mangás graças
as publicações da colônia japonesa. Uma de suas ambições era
introduzir no mercado mangás produzidos por brasileiros e para isso
contou com Cláudio Seto, com quem compartilhava influências em
comum.
Uma
dos primeiros trabalhos de Cláudio Seto foi “Samurai“. Um
quadrinho adulto fortemente inspirando nos gekiga que Seto
conheceu na infância. Eram histórias ambientadas no Japão Feudal
recheadas de violência, fatalismo, erotismo e até situações
homossexuais. Parte dessas histórias foram relançadas anos depois
pela Devir na coletânea “Flores Manchadas de Sangue“. Um
erro comum é achar que Cláudio Seto buscou inspiração em “Lobo
Solitário“, o famoso mangá da dupla Kazuo
Koike e Goseki Kojima. O trabalho de Cláudio Seto começou quase
três anos antes da publicação do mangá japonês. Sendo assim,
nunca existiu uma relação direta entre ambos os trabalhos.
Apesar
de ser um dos pioneiros do mangá nacional, Seto costuma ser lembrado
pela sua arte na HQ “Maria Erótica“. A revista surgiu por
um conselho de Minami Kenzi, que sugeriu a Seto que experimentasse
outros traços além do mangá. E assim, no ano de 1972, a revista
foi criada. A protagonista da comédia erótica de Seto era uma
jornalista paulistana cheia de tesão e curiosidade e suas histórias
continham uma mistura saudável de erotismo e humor. O quadrinista
não media esforços para intercalar seu traço com influências
reais, como o shibari, arte japonesa dedicada ao bondage.
Diferente de tudo o que se via na época, as histórias da
personagem libertina chamaram a atenção dos censores da ditadura
militar. O prédio da Edrel chegou a ser invadido pelos militares,
que apreenderam diversos originais da revista. A personagem
ressurgiria no cenário brasileiro em 1982, dessa vez pela editora
Grafipar, onde duraria mais vinte edições.
O
episódio de Maria Erótica mostrou como a classe de quadrinistas
estavam em sintonia com as revoluções do Verão de 1967. Enquanto o
tabu da pílula anticoncepcional era derrubada e o amor livre virava
febre entre jovens e universitários de todo o mundo, os quadrinhos
nacionais sofriam uma severa perseguição dos censores da ditadura
brasileira. A cruzada moralizadora era apoiada por organizações
conservadoras e religiosas, como a Tradição, Família e
Prosperidade. Por toda a década de 70, a Editora Grafipar foi um dos
grandes focos de resistência cultural contra o higienismo pudico da
ditadura, tendo em suas publicações eróticas o maior expoente
dessa manifestação. Este episódio é bem explorado no livro
“Maria Erótica e o Clamor do Sexo – Imprensa, Pornografia,
Comunismo e Censura na Ditadura Militar“, de Gonçalo Junior.
Após
o fim da Grapifar, Cláudio Seto se distanciou um pouco da cena
nacional de quadrinhos. Residindo no Paraná desde 1979, Cláudio
Seto foi membro da ABRADEMI (Associação Brasileira de Desenhistas
de Mangá e Ilustrações) e publicou charges em diversos
jornais locais, como “Tribuna do Paraná” e “O Estado
do Paraná”. Parte da colônia nipo-brasileira, o quadrinista
também se dedicou a realização de eventos relacionados a cultura
japonesa. Sobre a história da imigração japonesa, Cláudio
publicou uma série de livros, entre eles o “Lendas trazidas
pelos imigrantes do Japão“.
Cláudio
Seto é lembrando por seu estilo de vida zen e monossilábico. Seus
parentes, amigos e colegas de trabalho lembram dele como um chefe
exigente e uma pessoa carismática, de sorrisos singelos e
enigmáticos. Em 2008, nas comemorações do Centenário da Imigração
Japonesa, o autor foi homenageado no prêmio Troféu HQMix. Neste
mesmo ano, Cláudio Seto faleceu em decorrência de um AVC.
Seu
legado para a cultura brasileira é extensa e diversas de suas obras
merecem ser revisitadas por editores e leitores da nova geração. Em
Curitiba, o quadrinista é anualmente homenageado pela colônia
nipo-brasileira com o “Seto Matsuri“, um festival com
shows e workshops. Sua vida e obra foram exploradas em “O
Samurai de Curitiba“, um documentário dirigido por Rober
Machado e José Padilha. Termino esse texto com a esperança que os
novos fãs de mangás conheçam um dos grandes nomes dos quadrinhos
nacionais e que vejam na história de vida do quadrinista que
iniciativas envolvendo mangá em solo nacional são possíveis,
bastando ousadia e espírito empreendedor.
Fonte: Mundo-Nipo
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