sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O Samurai de Curitiba


Durante as décadas da ditadura, o país vivenciou em paralelo um cenário prolífero no meio dos quadrinhos. Buscando influencias distantes dos infantilizados (para os padrões da época) quadrinhos de super-heróis, quadrinistas brasileiros exploravam gêneros como pulp, sci-fi, western e até mesmo erotismo. Como colunista do Japanóia, gosto de lembrar a relação do público brasileiro com os mangá. E que embora hoje vivenciamos um mercado ativo, com novos títulos, editoras e público interessado, nós esquecemos que o passado dos mangás no Brasil é mais antigo que muitos imaginam. Muitos fãs desconhecem o nome de Cláudio Seto, um homem cuja obra serviu de ponto de partida para os mangás no Brasil.
Nascido em Jundiaí, interior de São Paulo. Chuji Seto Takeguma passou boa parte de sua infância no Japão, onde conheceu pessoalmente Osamu Tezuka e seu estúdio.  A presença do famoso quadrinista de mangás seria uma influência crucial nos primeiros trabalhos de Seto, como “Ninja – O Samurai Mágico” e posteriormente “Super Pinóquio“. Outra influência de Cláudio Seto foi o quadrinista Sanpei Shirato. Considerado um dos pais do gekiga e famoso pelo seu mangá “A Lenda de Kamui“, um drama histórico que aborda o Japão Feudal através de uma ótica marxista. Outra influência menos citada de Cláudio Seto é Hideko Mizuno, a autora de “Honey Honey”, considerado um dos primeiros mangás de sucesso voltados para o público feminino.
Chuji Seto passou boa parte de sua infância no Japão e teve uma criação budista. Ao retornar para o Brasil, Chuji Seto enfrentou dificuldades para retirar seu diploma primário em um colégio católico. Por seu nome japonês e sua ligação com o budismo, a administração do colégio o considerava pagão, exigindo que Chuji fosse catequizado para retirar o seu diploma. O nome “Cláudio” veio de seu irmão, que ainda residia no Japão. Cláudio Seto costuma ironizar o episódio em entrevistas, falando que a atitude do colégio lembrava os jesuítas com os índios no Brasil colonial e que ele era o “falso Cláudio Seto”.
Cláudio Seto se tornou o nome artístico do quadrinista, sendo lembrado até hoje por esse pseudônimo. Seto oficialmente entrou no cenário dos quadrinhos em 1964 com a Editora Edrel, graças ao convite de Minami Keizi, um dos membros fundadores da editora. Minami Keizi também cresceu no interior paulistano e teve contato com os mangás graças as publicações da colônia japonesa. Uma de suas ambições era introduzir no mercado mangás produzidos por brasileiros e para isso contou com Cláudio Seto, com quem compartilhava influências em comum.
Uma dos primeiros trabalhos de Cláudio Seto foi “Samurai“. Um quadrinho adulto fortemente inspirando nos gekiga que Seto conheceu na infância. Eram histórias ambientadas no Japão Feudal recheadas de violência, fatalismo, erotismo e até situações homossexuais. Parte dessas histórias foram relançadas anos depois pela Devir na coletânea “Flores Manchadas de Sangue“. Um erro comum é achar que Cláudio Seto buscou inspiração em “Lobo Solitário“, o famoso mangá da dupla Kazuo Koike e Goseki Kojima. O trabalho de Cláudio Seto começou quase três anos antes da publicação do mangá japonês. Sendo assim, nunca existiu uma relação direta entre ambos os trabalhos.
Apesar de ser um dos pioneiros do mangá nacional, Seto costuma ser lembrado pela sua arte na HQ “Maria Erótica“. A revista surgiu por um conselho de Minami Kenzi, que sugeriu a Seto que experimentasse outros traços além do mangá. E assim, no ano de 1972, a revista foi criada. A protagonista da comédia erótica de Seto era uma jornalista paulistana cheia de tesão e curiosidade e suas histórias continham uma mistura saudável de erotismo e humor. O quadrinista não media esforços para intercalar seu traço com influências reais, como o shibari, arte japonesa dedicada ao bondage. Diferente de tudo o que se via na época,  as histórias da personagem libertina chamaram a atenção dos censores da ditadura militar. O prédio da Edrel chegou a ser invadido pelos militares, que apreenderam diversos originais da revista. A personagem ressurgiria no cenário brasileiro em 1982, dessa vez pela editora Grafipar, onde duraria mais vinte edições.
O episódio de Maria Erótica mostrou como a classe de quadrinistas estavam em sintonia com as revoluções do Verão de 1967. Enquanto o tabu da pílula anticoncepcional era derrubada e o amor livre virava febre entre jovens e universitários de todo o mundo, os quadrinhos nacionais sofriam uma severa perseguição dos censores da ditadura brasileira. A cruzada moralizadora era apoiada por organizações conservadoras e religiosas, como a Tradição, Família e Prosperidade. Por toda a década de 70, a Editora Grafipar foi um dos grandes focos de resistência cultural contra o higienismo pudico da ditadura, tendo em suas publicações eróticas o maior expoente dessa manifestação.  Este episódio é bem explorado no livro “Maria Erótica e o Clamor do Sexo – Imprensa, Pornografia, Comunismo e Censura na Ditadura Militar“, de Gonçalo Junior.
Após o fim da Grapifar, Cláudio Seto se distanciou um pouco da cena nacional de quadrinhos. Residindo no Paraná desde 1979, Cláudio Seto foi membro da ABRADEMI (Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações) e publicou charges em diversos jornais locais, como “Tribuna do Paraná” e “O Estado do Paraná”. Parte da colônia nipo-brasileira, o quadrinista também se dedicou a realização de eventos relacionados a cultura japonesa. Sobre a história da imigração japonesa, Cláudio publicou uma série de livros, entre eles o “Lendas trazidas pelos imigrantes do Japão“.
Cláudio Seto é lembrando por seu estilo de vida zen e monossilábico. Seus parentes, amigos e colegas de trabalho lembram dele como um chefe exigente e uma pessoa carismática, de sorrisos singelos e enigmáticos. Em 2008, nas comemorações do Centenário da Imigração Japonesa, o autor foi homenageado no prêmio Troféu HQMix. Neste mesmo ano, Cláudio Seto faleceu em decorrência de um AVC.
Seu legado para a cultura brasileira é extensa e diversas de suas obras merecem ser revisitadas por editores e leitores da nova geração. Em Curitiba, o quadrinista é anualmente homenageado pela colônia nipo-brasileira com o “Seto Matsuri“, um festival com shows e workshops. Sua vida e obra foram exploradas em “O Samurai de Curitiba“, um documentário dirigido por Rober Machado e José Padilha. Termino esse texto com a esperança que os novos fãs de mangás conheçam um dos grandes nomes dos quadrinhos nacionais e que vejam na história de vida do quadrinista que iniciativas envolvendo mangá em solo nacional são possíveis, bastando ousadia e espírito empreendedor.
Fonte: Mundo-Nipo

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